O Que é o Brasileiro?
- 15 de jul. de 2024
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É imperativo que investiguemos nossa essência, não com o intuito de resgatar uma noção talvez ultrapassada de um povo ideal, nem para atingir algum projeto político incipiente, com matizes de ditaduras tropicais, banais e ineficazes. De modo algum. Devemos compreender o que define o brasileiro para, assim, formarmos uma identidade coesa. Pois, com uma identidade bem delineada, torna-se possível discernir seus limites e suas potencialidades; saber até onde se pode ir e onde é desnecessário investir esforço. A partir de uma identidade bem estabelecida, nasce uma nação que marcha em quase-harmonia, com caminhos e trilhos claramente traçados, pavimentando o futuro.
O brasileiro é, primeiramente, o homem cordial, como propôs Sérgio Buarque de Holanda. Contudo, cordial não implica necessariamente bondade, mas sim, como indica sua etimologia latina, cordialis, algo relativo ao coração. Somos um povo de relações afetivas, profundamente pessoais – somos a terra onde a empregada doméstica torna-se amiga íntima de sua patroa. Misturamos as esferas pública e privada, a fusão apolínea e dionisíaca. As notas de nossas músicas assemelham-se ao caminhar de um boêmio titubeante, por vezes descompassadas, mas sempre buscando aconchegar-se umas nas outras. No futebol, nossos jogadores procuram interagir, aproximando-se no campo. Nossos colegas de trabalho tornam-se padrinhos de casamento; os padres e pastores, companheiros de mesa.
Mesmo nos momentos mais difíceis, nas ações mais intoxicantes e sombrias, pode-se encontrar, de maneira ambígua, algum afeto. O machismo de outrora mascarava-se como proteção. O racismo, ao elogiar um negro, era suavizado, afinal, tratava-se de "um negro de alma branca". E essa natureza não belicosa, ainda que dissimulada, reflete-se na maneira como nos relacionamos com nosso país: odiamos e amamos o Brasil, e odiamos amá-lo. Contudo, o amamos por inteiro; não apenas suas riquezas naturais e minerais que os nacionalistas materialistas desejam proteger, nem uma tradição rígida que certos grupos políticos afirmam preservar. Somos um povo tropical, moldado por princípios cristãos, mas somos extraordinariamente flexíveis, não belicosos, tolerantes.
Talvez tenhamos sido a convergência de fatores perfeitos para o surgimento de algo grandioso; dadas as devidas proporções, tal como foi o cristianismo, um fenômeno forjado por confluências improváveis, na hora e no lugar adequados. Somos, como ressaltou Gilberto Freyre, fruto da miscigenação. Os brancos, com seu conhecimento e domínio; os indígenas, com sua sabedoria da natureza; os negros, mesmo trazidos como escravos, como força motriz e criativa do país.
Nunca apreciei muito a ideia de que precisamos defender o ocidente. Sempre me pareceu algo sem causa, um tanto pedante. Mas é que somos um país sui generis. Um povo simples, ignorante, mas dotado de um bom senso abundante, um inconsciente coletivo arraigado em suas crenças fundadoras – a saber, o cristianismo e a tradição ocidental. Quiçá, precisamos mesmo ser pedantes e defender aquilo que somos. Pois é melhor amar o que se é, do que odiar.
Mas para saber o que é o brasileiro, é preciso sobretudo saber donde vem, donde nasce: do Brasil. E que é Brasil?
Para Gilberto Freyre, o Brasil representa uma sociedade única, formada por um processo histórico singular de colonização, miscigenação e adaptação cultural. Em "Casa-Grande & Senzala", ele propõe uma interpretação inovadora da formação social brasileira, destacando o papel crucial das relações entre senhores de engenho, seus familiares e os escravos. Freyre vê a mestiçagem como o alicerce da identidade brasileira. Ele argumenta que a interação e a fusão entre indígenas, africanos e europeus criaram uma cultura híbrida, rica e complexa. Esse processo de miscigenação não se limitou ao aspecto biológico, mas também envolveu trocas culturais, religiosas e culinárias, moldando a sociedade brasileira em um processo contínuo de adaptação e transformação.
No clássico "Casa-Grande & Senzala", Freyre descreve a casa-grande como o centro da vida social e econômica do Brasil colonial, onde se desenrolavam complexas relações de poder, afeto e dependência entre senhores e escravos. Ele argumenta que a proximidade física e as interações cotidianas entre essas diferentes classes sociais resultaram em uma influência mútua, onde aspectos culturais dos escravos africanos permeavam a cultura dos colonizadores e vice-versa. Freyre destaca que a cultura brasileira emergiu de uma síntese de tradições indígenas, africanas e europeias. Essa fusão é evidente na língua, na música, na religião, na culinária e nas práticas sociais. Por exemplo, ele menciona como a cozinha brasileira se enriqueceu com ingredientes e técnicas de preparo africanas e indígenas, criando uma gastronomia única.
A capacidade de adaptação e a criatividade dos brasileiros são, para Freyre, características centrais da identidade nacional. Ele observa como os brasileiros desenvolveram maneiras inovadoras de lidar com as adversidades do clima, da geografia e das relações sociais, demonstrando uma notável resiliência e inventividade. Freyre também se posiciona contra as teorias racistas que predominavam no início do século XX, que viam a miscigenação como um fator de degeneração. Ele inverte essa lógica, celebrando a mistura racial como um fator positivo e enriquecedor, essencial para a formação de uma sociedade vibrante e dinâmica.
Para Gilberto Freyre, compreender o Brasil é compreender a sua história de miscigenação e intercâmbio cultural. O Brasil é, em sua visão, um "mosaico" onde diferentes peças se combinam para formar um todo harmonioso e único. Esta perspectiva desafia visões simplistas e homogêneas da identidade nacional, propondo uma interpretação mais rica e complexa da cultura brasileira. Freyre, portanto, vê o Brasil não apenas como um país, mas como uma civilização emergente, caracterizada por sua diversidade e capacidade de síntese cultural.
Freyre destaca a importância da mestiçagem na formação da identidade brasileira, vendo o Brasil como um "grande caldeirão" onde influências indígenas, africanas e europeias se fundem. Ele argumenta que as relações entre senhores de engenho e escravos moldaram a cultura brasileira, com ênfase nas interações sociais e culturais que ocorreram no espaço doméstico e rural. Para Freyre, portanto, compreender o Brasil é entender essa complexidade e sincretismo cultural, que resultam em uma sociedade rica em diversidade e criatividade.
Enquanto que, para Darcy Ribeiro, o Brasil é a nova Roma. Digo, "Brasil: Nova Roma" de Darcy Ribeiro é uma obra seminal que se insere na tradição das interpretações abrangentes e eruditas sobre a formação e identidade do Brasil. Publicada em 1986, a obra oferece uma análise detalhada e sofisticada da constituição do povo brasileiro como uma civilização híbrida, emergindo das complexas interações entre populações indígenas, africanas e europeias. Neste contexto, Ribeiro postula que o Brasil, assim como Roma antiga, representa uma síntese cultural única, um espaço onde diversas etnias e culturas se fundem para criar uma nova sociedade. Ele argumenta que o Brasil é um verdadeiro laboratório de civilização, onde a mestiçagem não é apenas biológica, mas também cultural, resultando em uma nação com características singulares e inovadoras.
Ribeiro articula sua visão do Brasil como uma "Nova Roma", onde a miscigenação e a pluralidade cultural formam a base da identidade nacional. Em um primeiro momento, ele traça paralelos entre a antiga Roma, que assimilou diversas culturas sob um império unificado, e o Brasil, que ao longo dos séculos integrou influências indígenas, africanas e europeias em uma sociedade única e vibrante. Ele refuta a visão pessimista de muitos críticos que veem a diversidade cultural brasileira como um empecilho ao desenvolvimento, propondo, ao contrário, que esta diversidade é a fonte de uma criatividade inesgotável.
A obra se estrutura em torno de uma reflexão crítica sobre a história do Brasil, enfatizando o papel da colonização, da escravidão e das resistências culturais na formação do ethos brasileiro. Ribeiro destaca que, apesar das profundas desigualdades sociais e dos desafios econômicos, o Brasil possui uma vitalidade cultural que o coloca como um possível centro de inovação e criatividade no mundo contemporâneo. Ele critica a tendência histórica de elites brasileiras de se alinharem com modelos europeus, negligenciando as riquezas culturais locais, e sugere que a valorização da cultura popular é essencial para a construção de uma identidade nacional sólida e autêntica.
Darcy Ribeiro utiliza uma abordagem interdisciplinar, incorporando cernes da antropologia, sociologia, história e filosofia para construir sua tese. Ele explora a dinâmica da miscigenação, não apenas como um processo biológico, mas como um fenômeno cultural e social que permeia todos os aspectos da vida brasileira. Esta miscigenação, longe de ser uma fraqueza, é vista por Ribeiro como a maior força do Brasil, criando uma cultura rica e sincrética que é ao mesmo tempo resiliente e inovadora.
A comparação com Roma é utilizada para ressaltar a ideia de que o Brasil, com sua vastidão territorial e diversidade cultural, possui o potencial de se tornar uma nova potência civilizatória, capaz de influenciar globalmente através de sua cultura e sua capacidade de integrar diferentes povos e tradições. Ribeiro sugere que a espiritualidade brasileira, com sua ênfase na comunidade e na celebração da vida, oferece uma alternativa valiosa aos modelos individualistas ocidentais. Ele vê na cultura afro-brasileira e indígena não apenas traços históricos, mas forças vivas que continuam a moldar a nação.
No campo econômico, Ribeiro explora as contradições do desenvolvimento brasileiro, destacando como a busca por modernização frequentemente exclui vastas parcelas da população. Ele argumenta que um verdadeiro progresso deve incluir uma reforma agrária e a inclusão das massas urbanas e rurais no processo de desenvolvimento. Para ele, a justiça social é um componente indispensável de uma nação verdadeiramente moderna e democrática.
Ribeiro também se debruça sobre a educação, que ele vê como o alicerce para o futuro do Brasil. Ele propõe um sistema educacional que valorize a cultura local e promova a inclusão social. Em "Brasil: Nova Roma", Ribeiro defende a ideia de que a educação deve ser um instrumento de emancipação e não de reprodução das desigualdades sociais. Ele critica a educação elitista e descolada da realidade brasileira, advogando por um currículo que reflita a diversidade cultural e as necessidades do povo.
Outro tema crucial na obra de Ribeiro é a questão da identidade nacional. Ele argumenta que o Brasil ainda está em busca de uma identidade que reconheça e valorize sua diversidade. Para Ribeiro, a verdadeira identidade brasileira só pode emergir do reconhecimento das contribuições de todos os grupos que compõem a nação. Ele vê a mestiçagem não como um problema a ser superado, mas como a base de uma identidade rica e inclusiva.
Ribeiro faz uma análise crítica do sistema político brasileiro, destacando suas falhas e potencialidades. Ele sugere que a democracia brasileira precisa ser aprofundada para incluir realmente as vozes das camadas populares. Para ele, uma democracia plena exige não apenas instituições formais, mas uma participação ativa e consciente da população. Ele propõe reformas que aumentem a transparência e a responsabilidade dos governantes, além de promover uma maior participação cidadã.
A questão ambiental também é abordada por Ribeiro, que vê na preservação da Amazônia e de outros biomas brasileiros uma questão de sobrevivência nacional. Ele argumenta que o desenvolvimento sustentável deve ser uma prioridade, não apenas para proteger a biodiversidade, mas para garantir o bem-estar das futuras gerações. Para Ribeiro, a ecologia é inseparável da justiça social e do desenvolvimento
Oferecendo uma visão tanto crítica quanto esperançosa do futuro da nação, Darcy Ribeiro projeta uma visão de futuro onde o Brasil se afirma como uma "Nova Roma" moderna, baseada na inclusão, na justiça e na celebração de sua diversidade cultural. Ele imagina um Brasil onde a miscigenação é vista como uma riqueza e onde todas as culturas que compõem o tecido social do país são valorizadas. Para Ribeiro, este futuro só será possível através de um esforço consciente e coletivo para superar as desigualdades e construir uma nação verdadeiramente unida e diversa.
Darcy Ribeiro e Gilberto Freyre são dois dos mais proeminentes intelectuais brasileiros que dedicaram suas obras à compreensão da formação e identidade do Brasil, e suas ideias frequentemente se entrelaçam, ainda que partam de perspectivas distintas.
Freyre enfatizou a ideia de uma "democracia racial" e a singularidade da sociedade brasileira formada pela interação harmoniosa entre portugueses, africanos e indígenas. Ele argumentou que a miscigenação e a influência africana foram centrais na formação cultural do Brasil, criando uma sociedade com características únicas, especialmente na região nordeste. Mas Darcy Ribeiro, em "O Povo Brasileiro" e "Brasil: Nova Roma", também enaltece a miscigenação como um elemento fundamental da identidade nacional brasileira. Contudo, diante a Freyre, Ribeiro adota uma visão mais crítica em relação às desigualdades sociais e às tensões raciais persistentes. Ele reconhece as contribuições de Freyre, mas sublinha que a harmonia descrita por Freyre frequentemente mascara as profundas injustiças e as assimetrias de poder que marcaram e continuam a marcar a história do Brasil.
Ambos os pensadores concordam que a mestiçagem cultural e biológica é uma característica distintiva da sociedade brasileira. Freyre viu na mestiçagem um processo harmonioso que levou à criação de uma sociedade rica e diversificada. Ribeiro, por sua vez, reconhece essa riqueza, mas enfatiza que a mestiçagem ocorreu num contexto de violência, exploração e resistência. Para Ribeiro, a mestiçagem é tanto um produto da opressão quanto uma fonte de inovação e resiliência cultural.
No campo da cultura, Freyre e Ribeiro compartilham a apreciação pelas manifestações populares brasileiras, embora Freyre tenha uma tendência a idealizar o passado colonial, vendo-o como uma época de maior integração cultural. Ribeiro, por outro lado, vê as expressões culturais populares como formas de resistência e de afirmação de identidade em face das desigualdades estruturais. Ele considera que a vitalidade cultural brasileira é uma resposta criativa e resiliente às adversidades históricas.
A educação também é um ponto de interseção entre os dois. Freyre valorizava a transmissão de conhecimentos e tradições culturais, muitas vezes enfatizando o papel das famílias patriarcais. Ribeiro, no entanto, vê a educação como uma ferramenta essencial para a emancipação e transformação social. Ele advoga por um sistema educacional que reflete a diversidade cultural e promove a inclusão social, uma visão que ele desenvolve a partir de suas críticas às estruturas de poder existentes.
Ambos os autores, ao destacarem a complexidade e a singularidade da formação brasileira, ajudam a entender o Brasil como uma nação com um potencial único devido à sua diversidade cultural. Freyre é mais otimista quanto à integração racial e cultural, enquanto Ribeiro adota uma postura mais crítica e pragmática, reconhecendo os desafios sociais e econômicos que ainda precisam ser superados.
No tocante à análise política, Freyre tende a ser mais descritivo e menos engajado em propostas de mudança estrutural. Ribeiro, por outro lado, é um intelectual engajado que defende reformas profundas na estrutura social e política do Brasil. Ele vê na democratização e na justiça social os caminhos para realizar o potencial do Brasil como uma "Nova Roma".
Assim, embora partilhem de um reconhecimento da mestiçagem como central para a identidade brasileira, Freyre e Ribeiro divergem na maneira como entendem as implicações desse processo e nas soluções que propõem para os problemas que ele gerou. Freyre oferece uma visão mais conciliatória e celebra a integração cultural, enquanto Ribeiro propõe uma análise crítica que reconhece as desigualdades e busca soluções transformadoras.
Em síntese, o pensamento de Darcy Ribeiro se entrelaça com o de Gilberto Freyre na valorização da mestiçagem e da diversidade cultural brasileira, mas se distingue pela ênfase na crítica social e na busca por justiça e igualdade, propondo uma visão mais dinâmica e transformadora do futuro do Brasil.
Mas o brasileiro, em todos estes causos, configura-se como um mosaico cordial, onde a arte sacra portuguesa se funde ao labor indígena e à profunda influência africana, formando uma tapeçaria cultural única.
O brasileiro, filho de uma terra vasta e diversificada, emerge como um ser multifacetado, forjado nas forjas da mestiçagem e da sincretização cultural. Este habitante da nova Roma, como poeticamente vislumbrou Darcy Ribeiro, carrega em si as marcas de uma história de encontros e desencontros, de resistências e resiliências.
A cordialidade do brasileiro não é um simples traço de caráter, mas uma característica enraizada em sua maneira de ser e estar no mundo. É uma cordialidade que nasce do convívio forçado e depois desejado entre diferentes etnias e culturas. Nas rodas de samba, nas feiras livres e nos carnavais, é possível sentir essa proximidade, uma disposição para o diálogo e para o acolhimento do outro, onde o afeto se sobrepõe às distâncias sociais e econômicas.
O humor do brasileiro é uma ferramenta de sobrevivência, uma forma de lidar com as adversidades que a história lhe impôs. É um humor que desenha sorrisos em meio às dificuldades, que encontra leveza mesmo nos momentos mais pesados. Essa habilidade para rir de si mesmo, para encontrar o cômico no trágico, reflete uma sabedoria popular que ensina a enfrentar a vida com graça e leveza. As piadas, as anedotas e os causos, contados com brilho nos olhos, são expressão de uma inteligência vivaz que subverte a seriedade com um toque de genialidade. E aí está a belíssima irreverência do brasileiro, uma qualidade que desafia as convenções e as hierarquias estabelecidas. É uma irreverência que se manifesta na música, na literatura, no teatro e na vida cotidiana, uma forma de contestação que é ao mesmo tempo lúdica e profunda. O brasileiro brinca com as palavras, com as normas, com os costumes, transgredindo com não programada elegância e criatividade. Essa irreverência é um ato de liberdade, um grito de autonomia que reivindica o direito de ser diferente, de ser múltiplo, de ser único.
E assim, o brasileiro se apresenta ao mundo como um mosaico vivo, uma síntese de contrastes harmonizados pela sua capacidade de adaptação e reinvenção. Ele é cordial, não por conveniência, mas por convicção. É humorista, não por distração, mas por compreensão da complexidade da vida. E é irreverente, não por desrespeito, mas por amor à liberdade e à autenticidade. Neste ser tão peculiar reside o sonho de uma nova civilização, onde a diversidade é celebrada e a humanidade é plenamente vivida, traçando um caminho de esperança e inspiração para além das margens de sua própria história.
Por Helida Faria Lima
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