Jesus Cristo, Rock n Roll e Rio de Janeiro, Uma Entrevista com Rebanhão
- 18 de jul. de 2024
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Atualizado: 18 de jul. de 2024
Janires Magalhães Manso, ou simplesmente Janires (Vitória, 22 de maio de 1953 — Três Rios, 11 de janeiro de 1988), foi um cantor, compositor, produtor musical, arranjador e multi-instrumentista brasileiro. Ele iniciou sua carreira no final da década de 1970 e é amplamente reconhecido como um dos principais responsáveis pela modernização da música cristã na década de 1980. Nascido em uma família pobre e filho de mãe solteira, Janires teve um forte contato com a música desde a juventude. No entanto, durante um período de sua vida, envolveu-se com o uso de drogas. Após ser preso, ele passou um tempo em uma casa de recuperação, onde se tornou cristão. A partir daí, voltou a se dedicar à música. Janires foi o fundador e um dos vocalistas do Rebanhão, a primeira banda de rock cristão do Brasil a alcançar notoriedade nacional. Com o grupo, compôs várias canções, destacando-se "Baião" e "Casinha". O primeiro trabalho do Rebanhão, "Mais Doce que o Mel", lançado em 1981, foi alvo de críticas de líderes religiosos por usar sonoridades até então proibidas nas igrejas, como guitarras distorcidas e letras contextualizadas com a realidade social e econômica da época. Apesar disso, a banda fez sucesso com o público jovem, trazendo uma nova musicalidade para aquela geração. O último trabalho de Janires com o Rebanhão foi o álbum "Janires e Amigos", lançado em 1985 e considerado o primeiro disco cristão gravado ao vivo no Brasil. Após esse lançamento, ele deixou o grupo, mas manteve sempre contato com seus membros. Com a saída de Janires, a música do Rebanhão adquiriu um estilo mais pop, com influências do art rock. Nesta fase, Carlinhos Felix, junto com o tecladista Pedro Braconnot, compôs a maioria das canções. Durante esse período, o grupo lançou vários sucessos, como "Primeiro Amor", "Nele Você Pode Confiar", "Paz do Senhor" e "Palácios", esta última do álbum "Princípio" (1990), que se tornou um dos pilares do movimento gospel. E ao longo de sua carreira, o Rebanhão realizou vários feitos significativos, sendo considerado o primeiro grande precursor do rock cristão e a primeira banda expoente da música cristã contemporânea no Brasil.
A banda fora fundada por Janires no final da década de 1970, e Janires se mudou para o Rio de Janeiro onde, junto com o tecladista Pedro Braconnot, integraram músicos da Igreja Presbiteriana de Copacabana na formação. Paulo Marotta (baixo), Kandell Rocha (bateria), Zé Alberto (percussão) e Carlinhos Felix (guitarra) foram os primeiros integrantes. Com isto, como a dinâmica e a química entre os membros fundadores do Rebanhão, especialmente entre Janires e Pedro Braconnot, influenciaram a criação das primeiras músicas da banda?
Na época em que Janires veio para o Rio de Janeiro, minha família tinha entrado na igreja evangélica há pouco tempo, alguns anos antes. Havia reuniões de oração na casa da minha mãe, onde eu morava aos 18 ou 19 anos. Um dia, Janires apareceu lá e alguém comentou sobre mim para ele, mencionando que eu tocava teclado em um estilo meio rock. Ele me convidou para levar um som e disse que estava montando uma aparelhagem na Igreja Presbiteriana onde ensaiaríamos. Janires me deu uma fita cassete que ele havia gravado em São Paulo com o pessoal de uma casa de recuperação. Foi assim que nos conhecemos.
Fui ao ensaio, e começamos a andar juntos. Janires frequentava muito minha casa, onde ensaiávamos, e acabamos tocando juntos no Rebanhão desde o início. Depois, surgiu a oportunidade de gravar nosso primeiro LP. Janires foi como um irmão mais velho para mim, quase um pai na fé. Ele me ensinou muito e eu admirava muito o ministério dele, pois ele trabalhava intensamente pelo reino de Deus, dedicando-se à obra evangelística - e tudo isto de forma muito despojada, né.
Conheci também Paulo Marotta, filho de um presbítero da igreja que nos apoiava, e Kandel Rocha Rocha. Zé Alberto participou da capa do LP, mas depois não esteve mais conosco. Outras pessoas também nos apoiaram, mesmo que não estivessem na capa.
Dentre as sonoridades exploradas pela banda, destacam-se o rock progressivo e o pop rock, sendo ambos forte influência da Tropicália e do Clube da Esquina. Ocorre que Clube da Esquina é um termo usado para se referir a um grupo de músicos, compositores e letristas, surgido na década de 1960 em Belo Horizonte. Tendo figuras como Milton Nascimento, Toninho Horta, Wagner Tiso, Lô Borges, Beto Guedes e Márcio Borges, a sonoridade do Clube da Esquina é intensamente caracterizada como inovadora. E como característica desta sonoridade inovadora, têm-se por exemplo uma espécie de fundição das inovações trazidas pela Bossa Nova com elementos do jazz, do rock – principalmente os Beatles –, música folclórica dos negros e mineira, música erudita e música também hispânica. Enquanto uma das marcas principais do tropicalismo foram suas inovações estéticas radicais, que mesclavam elementos de manifestações tradicionais da cultura do Brasil – notadamente a união do popular e da vanguarda, bem como a fusão da tradição brasileira – com tendências estrangeiras da época. E musicalmente, a Tropicália representou uma renovação no cenário musical brasileiro ao fundir gêneros como o baião, o caipira, o pop e o rock. Como vocês fundiram tão bem estes dois gêneros tão ricos num contexto cristão, adicionando ainda riqueza teológica as canções, e consequentemente, aos álbuns?
Naquela época, Janires foi o idealizador da banda e veio da casa de recuperação Desafio Jovem, que começou nos Estados Unidos como Teen Challenge, fundado por David Wilkerson. Wilkerson foi um pastor muito conhecido por pregar para as gangues de Nova York, especialmente no Brooklyn, onde fez um trabalho notável, ajudando muitas pessoas a se livrarem das drogas. No contexto do final dos anos 70, após Woodstock, havia um sério problema de jovens se envolvendo com drogas, sexo e rock'n'roll. Janires, assim como eu, teve experiências com isso na adolescência, e aqui no Brasil a situação era semelhante.
A estratégia de David Wilkerson foi usar música contemporânea para se aproximar dos jovens. Na época, a música evangélica era muito tradicional, restrita a corais, quartetos vocais e órgãos, sem espaço para bateria ou guitarra. Janires trouxe a visão de usar uma música popular para um trabalho evangelístico, com o objetivo de alcançar os jovens, especialmente aqueles envolvidos com drogas.
Janires tinha experiência na música secular, tocando em casas noturnas em Brasília, e eu também tinha minha vivência musical, pois minha família sempre gostou muito de música. Inspirados por artistas como Milton Nascimento e o Clube da Esquina, decidimos criar uma sonoridade contemporânea. Acreditávamos que essa abordagem era crucial para alcançar nosso público-alvo.
Foi nesse contexto que surgiram músicas como "Baião", "Casinha" e "Amor", que têm influências diversas, incluindo guarânia. Janires trouxe muitas dessas ideias e composições também brasileiras, além do pop e do rock. Eu, particularmente, era fã das bandas de rock da época e levei essa sonoridade para o nosso trabalho. Utilizamos o que aprendemos e vivenciamos para criar músicas com letras poéticas, algo muito comum na música mineira e na brasileira em geral, onde a poesia e a rima têm um papel importante. Buscamos compor músicas com histórias e rimas que se encaixassem num contexto evangelístico. Um exemplo disso é a música "Casinha", que narra a história de uma cidade, mostrando tanto sua aparência quanto a realidade subjacente e como a fé poderia transformar essa realidade.
As letras foram uma parte crucial do ministério do Rebanhão. A nossa visão era transmitir uma mensagem evangelística principalmente para os jovens. No entanto, essa abordagem muitas vezes entrava em choque com o que era tradicionalmente feito nas igrejas. Muitos não entendiam, criticavam e condenavam nossa música como "música do mundo". Alguns pastores até proibiam os jovens de assistir aos nossos shows ou ouvir nossas músicas.
Apesar das críticas, recebemos muitos testemunhos de pessoas dizendo que nossa música os fez refletir, mudar de vida e buscar a Deus. Acredito que valeu muito a pena. Para quem tem fé, entende que isso foi algo que veio de Deus para nós, veio do Alto.
Se apresentando em locais até então pouco convencionais para grupos de origem evangélica, como praças públicas, escolas, presídios e praias, o Rebanhão foi a primeira banda evangélica a lotar palcos profissionais como o famoso Canecão, no Rio de Janeiro. Foi também a primeira banda gospel a assinar contrato com gravadoras multinacionais como a Polygram e a Warner. Com um repertório diverso, marcado por ritmos jovens e linguagem contemporânea, a banda quebrou paradigmas e contribuiu para a formação de uma nova identidade na música evangélica brasileira - afinal, faziam uso de muitos elementos então considerados profanos para a musicalidade religiosa evangélica: linguagem informal, postura cênica, visual dos músicos, apresentação no estilo espetáculo e muito mais. A banda certamente representa a fase de modernização da música evangélica nos anos 80. E como lidaram com o impacto no cenário da música cristã naquela época?
É engraçado lembrar dessa época porque eu era um novo convertido e não fui criado na igreja. Para mim, tudo parecia normal e eu não tinha noção do impacto que nosso trabalho teria. Com o tempo, fui conhecendo igrejas mais tradicionais, como a Assembleia de Deus, que tinha regras e costumes muito rígidos na época. Os membros não podiam assistir televisão, jogar bola, ir à praia, entre outras restrições. O Rebanhão representava uma realidade totalmente diferente. Hoje em dia, muita coisa mudou; por exemplo, na Assembleia de Deus do Recreio, onde sou membro, as pessoas jogam bola, vão à praia e assistem televisão. As regras de conduta se tornaram mais flexíveis.
Naquela época, o Rebanhão causou um impacto significativo. Muitas pessoas não entenderam nosso trabalho, mas muitos amaram e sentiram que era o que faltava. Pais começaram a perceber que os jovens que seguiam o Rebanhão se tornaram líderes e pastores. É claro que, como em qualquer movimento, houve aqueles que se afastaram e perderam a fé. Mas acredito que, no geral, o impacto foi positivo para a igreja. Não apenas por causa do Rebanhão, mas como parte da estratégia de Deus para renovar a visão e adaptá-la aos novos tempos.
O conhecimento está crescendo rapidamente hoje em dia, e as crianças aprendem tanto coisas boas quanto ruins muito rápido, especialmente com a internet e o YouTube. A estratégia da igreja precisa acompanhar essas mudanças sem perder a essência. Manter a fé, o amor e a essência é o mais difícil. Felizmente, conseguimos lidar com isso e seguir em frente. Deus tem honrado o ministério do Rebanhão, e ouvimos muitos testemunhos de pessoas dizendo que nossa música marcou suas vidas. Isso é gratificante e nos faz agradecer a Deus, porque tudo é por Ele e para Ele.
É importante lembrar que, na vida cristã, não somos artistas em primeiro lugar; somos ovelhas. Se o objetivo é o estrelato ou criar um personagem, isso eventualmente desmorona. A vida cristã não é fácil e a fé não garante uma vida sem dificuldades. Todos enfrentam desafios, justos e injustos. Nosso trabalho é procurar ter uma vida honesta e ser corretos em todas as situações, mesmo com as dificuldades que todos enfrentam.
Em 1984, a Quinta da Boa Vista, em São Cristóvão, no Rio de Janeiro, é lotada por mais de quinze mil pessoas para ouvi-los cantar sobre Jesus em alto e bom rock. Não existia Instagram, tampouco TikTok ou Facebook. Em 1990, vocês (Paulinho, Pedro, Carlinhos e Tutuca) se apresentam no Teatro Nacional em Brasília. E alegam ser o lugar preferido da banda para cantar, sem esquecer do Circo Gran Circular, embaixo das torres de TV, claro. Como fora fazer tanto sucesso sem influência midiática para além das rádios?
Naquela época, era o tempo das rádios. O evento na Quinta da Boa Vista foi organizado pela rádio Boas Novas, liderada pelo Graça e Paz, que reuniu pastores e igrejas para o evento. O Graça e Paz era excelente em promover eventos e, através da rádio, que tinha uma grande audiência, conseguiu atrair muita gente. O povo evangélico ouvia muito rádio porque as grandes redes de televisão, como a Globo, Manchete e Tupi, tinham uma programação totalmente secular. A rádio, por outro lado, oferecia programas evangélicos, como os da Boas Novas, que contavam com figuras como João Dourado, Graça e Paz e muitos outros.
Quando fazíamos qualquer coisa com o apoio da rádio, o evento acontecia. Realizamos vários eventos no auditório da rádio Boas Novas e o evento na Quinta da Boa Vista foi especial, por isso atraiu tanta gente. Também tocamos no Canecão no início da rádio Melodia, 97, que deu todo o apoio e divulgou o evento, lotando o Canecão. Naquela época, não havia Instagram ou redes sociais, mas a rádio cumpria esse papel.
O público evangélico migrou em grande parte para as redes sociais hoje, mas a rádio ainda tinha uma audiência significativa naquela época. No Rebanhão, prezávamos pela qualidade do som e, na medida do possível, trabalhávamos para fazer algo bom. No início, contamos com o apoio da gravadora Arca Música Evangélica, que comprou instrumentos e uma kombi para nos levar aos eventos. O dono dessa gravadora era o Sr. Teófilo. Com essa gravadora, gravamos os álbuns "Mais Doce Que O Mel" e "Luz do Mundo". Posteriormente, fechamos com a Polygram.
Gravamos dois discos pela Polygram, o que ampliou significativamente nossa visibilidade. A música "Jesus é Amor" chegou a tocar em algumas rádios seculares, abrindo novos canais para nossa música. Com isso, começamos a viajar muito pelo Brasil, alcançando um público cada vez maior, tudo isso em uma época sem internet (risos).
Quais foram os momentos mais memoráveis ou marcantes na carreira do Rebanhão, tanto no palco quanto fora dele?
Então, tivemos vários momentos importantes. Já mencionamos alguns: tocamos no Canecão, no Teatro Nacional e, em 1994, no Pacaembu, onde acredito que havia quase 100 mil pessoas. Foi o maior público que já tivemos, com várias bandas presentes, incluindo o Rebanhão. Foi uma experiência extremamente gratificante tocar para uma quantidade tão grande de pessoas. O mais especial para mim foi receber testemunhos de pessoas que foram tocadas pelas nossas músicas. Embora eu saiba que, como ser humano, sou falho e muitas vezes não atinjo o alvo, é incrível ver como a Palavra de Deus é viva e pode transformar vidas e abençoar pessoas.
Lembro de uma vez em que um rapaz escreveu uma carta, numa época em que não havia Internet. Ele era de Manaus e contou que estava indo comprar drogas quando ouviu nossa música "Palácios" no rádio. Na mesma hora, ele voltou para Jesus e desistiu das drogas. Ele escreveu para agradecer pela bênção. Não me lembro de todos os detalhes da carta, mas foi muito tocante. Perceber que uma música que fiz, sem intenção específica, foi usada por Deus para abençoar e transformar a vida de alguém é a melhor recompensa. Isso, para mim, é o ponto alto do meu ministério com o Rebanhão. O testemunho é o que temos de mais importante.
E continuamos nossa missão, pregando o evangelho e proclamando que Jesus é amor.
Carlinhos Felix, Pedro Braconnot, Paulo Marotta e Fernando Augusto no álbum "Novo Dia", lançado em 13 de setembro de 1988 pela gravadora PolyGram. Com show no Canecão e lotação máxima do público, a apresentação se tornou um marco inédito na história do segmento evangélico. "Jesus é Amor" recebeu uma versão em videoclipe, que se tornou o primeiro clipe da banda e um dos primeiros do cenário cristão.
Rebanhão, com sua audaciosa inovação e pertinácia, construiu pelo Brasil um legado imorredouro, perpetuando-se como um farol luminoso que guia gerações pelo caminho da fé e do rock. A genialidade composicional e a execução magistral de suas melodias convertem-se em verdadeiras epifanias sonoras, capturando a essência de uma espiritualidade robusta e mais que do que autêntica, originalíssima.
E ao saudoso Janires, uma lembrança de gratidão e admiração:
A música de Janires por muitas vezes fundiu o rock com ritmos brasileiros, como o baião, a música popular brasileira e o choro. Entre músicos do Brasil, Zé Rodrix, Taiguara, Ivan Lins, 14 Bis, Raimundo Fagner, Gonzaguinha e Mutantes eram algumas de suas influências, dentre bandas e artistas do exterior, como Pink Floyd, The Beatles, Genesis, dentre outros. As letras e sonoridades contidas em suas canções surgiam numa época em que na maior parte das igrejas cantavam-se hinos usando piano e órgão. O violão acabava de ser aceito nas congregações, entretanto a guitarra, bateria, baixo e os sintetizadores eram vistos com maus olhos pelas autoridades eclesiásticas. O músico tratou em suas letras o cotidiano humano e fazendo um contraste com a vida em Jesus Cristo, nosso Senhor.
“Ironizava os políticos corruptos, os comerciais da TV, parodiava filmes e novelas, falava das realidades, de sonhos, fracassos e frustrações, do pecado e da miséria resultante, para apresentar, em fulgurante contraste, a estonteante luz, a estupenda graça e a infinita paz de Jesus Cristo.”
Na sua composição mais conhecida, "Baião", Janires faz uma análise da situação social do planeta: "Sem Jesus Cristo é impossível se viver nesse mundão, até parece que as pessoas estão morando no sertão, é faca com faca, é bala com bala, metralhadoras e canhões, até parece que a faculdade só tá formando lampiões... e o dinheiro anda mais curto do que perna de cobra..."
E quando foram reunidas todas as suas posses, Paulo Marotta conta que mal deram para encher duas bolsas. Seus principais pertences eram o seu violão, roupas e sua velha bíblia – que fora a inspiração das suas belas e divertidas canções que hoje ouvimos.
Entrevistado: Pedro Braconnot. | Entrevistadora: Helida Faria Lima. | Data: 15/07/2024.
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